











OS ÚLTIMOS SUSPIROS DA PINTURA ACADÊMICA NO PARÁ: A HERANÇA BETTY VEIGA SANTOS
Edison Farias - Professor Doutor da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará.
Joaquim Netto – Professor Doutor do Departamento de Letras e Artes da Universidade Federal do Amapá.
RESUMO:
A partir de um recorte que envolve documentos, obras de acervos e relatos, o presente paper descreve a vida e a obra da pintora e professora Betty Veiga Santos, assim como desvela a trajetória desta artista, que formou um considerável número de pessoas, contribuindo para o crescimento da cultura visual de Belém. Bem como analisa e contextualiza a mudança de paradigma visual nas artes plásticas em Belém, na obra da artista estudada e nos desdobramentos sociais.
Palavras-chave: Ensino da arte em Belém; Betty Veiga Santos; pintoras paraenses.
ABSTRACT
From a cutout involving documents, collections and reports, the present paper describes the life and work of the painter and teacher Betty Veiga Santos as unveils the trajectory of this artist, who formed a considerable number of people, contributing to Belém´s visual culture growth. As well as analyzes and contextualizes the visual paradigm change in Belém´s plastic arts, in the artist studied work and it´s social consequences.
Keywords: Art education in Belém; Betty Veiga Santos; paraenses painters.
Introdução
Na tarde de 14 de abril de 2015, na cidade de Belém/PA, morria Betty Veiga Santos (1921), numa precária unidade de saúde pública. A mídia televisiva local informara alguns dias antes, sobre duas irmãs nonagenárias que se encontravam em estado de abandono, em uma casa despojada de confortos no bairro de Batista Campos. No entanto, o que ninguém sabia e tampouco a mídia - excetuando-se alguns ex-alunos e parentes -, é que uma das mulheres quase moribunda, era a filha de um expressivo artista do Estado do Pará: José Veiga Santos - pintor paisagista, professor e fotógrafo.
Nesse contexto, Betty herdara o refinado talento do seu pai José Veiga Santos - tanto aquele da arte da pintura de cavalete, quanto o de ensinar a arte dos pincéis, cuja habilidade lhe proporcionou um olhar sensível – capaz de apreender a realidade sob a ótica da beleza, da divina proporção e harmonia: princípios que se tornaram acentuados em sua formação como pintora e professora – evidente em sua produção artística.
Dessa forma, manuseando o “acervo pessoal” [1] deixado por Betty, construímos conexões para um estudo que possa resgatar sua vivência estética - importante como referência na construção de novos conhecimentos que ampliem a História da Arte e do Ensino da Arte em Belém. Assim, como pesquisadores de instituições distintas (UFPA/UNIFAP), mas com interesses análogos, conjugamos os nossos esforços e, a partir de caminhos múltiplos, procuramos delinear alguns aspectos significativos.
Primeiro, apresentaremos alguns dados da entrevista concedida pela pintora em 2003, na casa onde morava e trabalhava - encontro descrito no paper “O Macro micro mundo de Veiga Santos”[2]. Segundo, esboçaremos as experiências como aluno do Atelier, onde estudamos desenho, aquarela e pintura com Betty Veiga Santos (1974-1994).
Visita ao Atelier
Em 2003, a pintora Betty Veiga Santos nos recebeu em seu atelier para conversarmos sobre a vida e produção do seu pai. A conversa era fundamental para o acesso às informações mais detalhadas sobre José Veiga Santos, pintor que era parte do objeto da pesquisa que estávamos, à época, realizando.
Vale ressaltar que um documento não publicado da lavra de Paulo Ricci, também pintor paraense, achado importante para a pesquisa citada, mostrou que Betty teria significativa participação no cenário da cultura visual em Belém, notadamente expositiva. Porém a vida da artista ocorre colimada à figura do pai, José Veiga Santos que diferentemente da filha, recebe tópico destacado no documento citado. De fato, o relatório Ricci, “As artes plásticas no Estado do Pará” [3] cita José Veiga Santos na parte em que trata dos cursos de pintura dos anos 20 e, foi justamente nesse ambiente de ensino e prática da pintura que Betty despertou para a arte. Assim escreveu Ricci:
Nos anos 20 prosperaram, também, além dos cursos mantidos na Academia Livre de Belas Artes, os magníficos cursos de desenho e pintura do Colégio Moderno, este fundado em 1929 [...] A estes vinham somar-se o curso particular de desenho da professora Antonieta Santos Feio, née Antonia Santos, que cursara a Escola de Belas Artes de Florença, na Itália, tendo se especializado em retratos, e o do professor Veiga Santos, com especialização em New Jersey. (RICCI, 1997, p. 231)
Ora, anteriormente, no texto referido, Ricci não menciona José Veiga Santos entre os nomes que elencou sob o título de “Os pintores paraenses do começo do século”[4], todavia cita Arthur Frazão, que fora, coevo à Veiga Santos na pintura. Note-se que, no mesmo relatório, Ricci assinala que o aprendizado em pintura, no final do século XIX, em Belém, se processou devido às pensões que o Governo concedia aos artistas locais para estudar na Europa [5], posteriormente, depois da extinção do apoio institucional, para esse tipo de estudo, o mesmo ficou a depender de iniciativas privadas no sentido de se criar escolas oficiais ou cursos particulares de belas artes [6]. Em meio à relação dessas iniciativas destacam-se, além do curso já citado do Colégio Moderno, em que atuava a professora Clotilde Pereira (desenho e pintura), os cursos, segundo Ricci, do Colégio Progresso Paraense, da professora Antonieta Santos Feio. Isto, no que se referem aos cursos mais ou menos permanentes, porém, há que se notar que houve outros cursos, em ateliers particulares, oferecidos por artistas que pelo solo de Belém passaram em suas respectivas trajetórias artísticas e pessoais, como é o caso de Francisco Silva y Estrada, Alfredo Norfini, dentre outros.
Todo este breve histórico justifica, de per se, a dificuldade que enfrentaram àqueles que possuíam pendores artísticos ou vontade de fazer arte, em Belém no início do século XX e, nossa pintora, do mesmo modo, não escaparia desse cenário de lacuna epistêmica e, assim como os demais aspirantes à arte, sofreria os impactos negativos não fosse o pai ser pintor e possuir, dentro de casa, a prática e ensino da pintura. Talvez por conta desse aspecto biográfico, Betty tenha incorporado a tristeza mesclada de orgulho em não possuir formação acadêmica, quando se referia à sua arte:
Acho que já nasci com vontade de pintar [...] Gosto de poder pintar paisagens e abusar das cores, em formas que não tenham muito com a realidade. Adoro a liberdade de criar. Com pinceladas livres e harmoniosas. Por outro lado, sou fascinada pelo estilo clássico, que é reproduzir fielmente os retratos de pessoas. [...] Desde muito cedo eu reparava no meu pai trabalhando [...] Vê-lo trabalhar em suas obras foi mais de que um motivo para que eu também me interessasse pelas artes.[7] (RICCI, 1997, p. 136)
O último encontro que esperávamos ter com Betty, não se concretizou, uma vez que ao tomarmos conhecimento sobre a triste reportagem veiculada na TV, achamos que deveríamos visitá-la, fosse por uma questão humanitária fosse por interesse de querer proteger o espolio material que cercava a artista, notadamente àquele relativo à sua visão de artista e professora de arte, incluindo o mobiliário do atelier, documentos, fotografias e obras pictóricas (da mesma e do pai), uma vez que conhecíamos tais bens.
Uma forte chuva prenunciava uma despedida sem olhares, no portão do antigo atelier, do lado de fora a vizinha nos informou que as senhoras solitárias tinham acabado de ser levadas para o “pronto socorro” numa ambulância, pois haviam passado mal alguns minutos antes de nossa chegada.
Às nossas preocupações se mesclaram sentimentos de perda, impotência e pena de imaginarmos, em vias de serem perdidas, todas as fontes de informação sobre o ensino e a formação de pessoas na arte pictórica e do desenho, a partir do acervo contido no espolio Veiga Santos. Pois, sabedores do que ocorre, geralmente em Belém, com os espólios de figuras importantes da cultura paraense, nos propusemos a contatar possíveis parentes ou responsáveis pelos bens matérias atinentes às atividades artísticas de Betty, para que pudéssemos preservar o conjunto, se não dos bens moveis de Betty, pelo menos, os documentos dos guardados da pintora que continha, também, informações sobre José Veiga Santos, o mestre exemplar.
Depois de inúmeros obstáculos superados, conseguimos que parte da biblioteca, documentos, fotografias, rascunhos, desenhos, alguns objetos das atividades do atelier de uso particular de Betty, fossem doados ao nosso grupo de pesquisa e, finalmente, semanas após a morte de Betty e Luci Veiga Santos, recebemos, também por doação, algumas telas da artista e de José Veiga Santos e que, num primeiro mergulho, nos possibilitaram acompanhar e documentar, de forma inédita, os últimos suspiros da prática e do ensino da arte acadêmica - fechavam-se os olhos amantes das paisagens e retratos e abriam-se outras possibilidades de visões sobre o passado recente das artes visuais em Belém do Pará, quando daquele ocaso molhado e cinzento como as bases das telas de Betty, à Rua dos Pariquis, 1541 (Belém/PA).
A formação “acadêmica - doméstica”
A intervenção sobre a situação da pintora e o desejo de tentar ajudá-la, mesmo que tardiamente, trouxe-nos material inimaginável que pudesse existir sobre a história daquele atelier de pintura, em ocaso, e seus desdobramentos sobre a cultura visual no Pará.
No primeiro contato com uma vizinha das “velinhas”, como eram conhecidas as duas irmãs idosas, nos foi apresentado àquele que seria o último trabalho de Betty Veiga Santos - um óleo sobre tela 40 x 50 cm., objeto presenteado pela pintora, no final da vida para a amiga que, por várias vezes, a socorreu. A tela, inacabada, encontra-se carregada de significados sobre o processo artístico, sobre o pensamento em arte, assim como sobre questões existenciais da autora.
Betty Veiga Santos. s/t. Óleo sobre tela, c. 2000.
Coleção particular.
Em se considerando a postura diante de uma imagem inacabada por parte de uma pintora da verve de Betty, comportamento comum à pintores acadêmicos, é inconcebível que a mesma tenha dado à outrem um trabalho inacabado. Todavia a artista presenteou a obra à vizinha, o que aponta para que se entenda que ela considerava a pequena tela acabada.
Betty viveu, respirou e reproduziu o processo da pintura acadêmica em toda a sua trajetória. Desde a mais tenra idade, observando o pai trabalhar, teve um ensino doméstico em arte e, ainda com 9 [8] anos desenhou à crayon, a partir de fotografia - o retrato do Presidente Campos Sales -, certamente o desenho do qual o pai e ela própria se orgulhavam.
Em entrevista a Luiz Carlos Santos [9], Betty declarou que fez pintura por encomenda desde os quinze anos de idade e seguindo os passos do pai, o Pintor José Veiga Santos, lecionou a arte da pintura, àqueles que se matriculavam no Curso do Ateliê Veiga Santos.
A figura de menina representada, nesta que consideramos um dos últimos trabalhos de Betty, numa análise preliminar, pode se considerar como a própria artista infante, ou mais uma de suas encomendas. Em entrevista a nós concedida em 2003, a artista nos declarou - e os arquivos da mesma atestam a veracidade desse relato -, que José Veiga Santos, tivera um estúdio fotográfico e, em análise apurada sobre a pintura de Veiga Santos, percebe-se que da fotografia o pintor extraiu muitas lições e, nos ensaios fotográficos, muitas vezes, utilizou a própria família, em especial Betty, como modelo.
Certamente, em se considerando o processo da pintura, ratificado por suas declarações, podemos afirmar que a pintura é cópia de uma fotografia:
Pintar alguém que está posando para você é mais difícil, e nem sempre o resultado é satisfatório. Levam-se sessões para terminar um retrato simples, e as expressões do rosto nunca conseguem ser as mesmas em cada sessão. Com a foto pronta, apenas se copia o modelo, com mais precisão.[10]
Do espólio deixado por Betty, apresentamos a seguir dois desses ensaios de autoria de José Veiga Santos, ambas, certamente, das filhas do pintor. A primeira imagem é um retrato de Mary de Araújo Santos, irmã mais nova de Betty que morreu precocemente. A segunda fotografia trata-se provavelmente de um retrato de Beatriz de Araújo Santos (Betty, menina).
José Veiga Santos. Fotografia, sem data.
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará.
José Veiga Santos. Fotografia, sem data.
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará
Ora, ao compararmos a fatura das duas fotografias e os aspectos fisionômicos das crianças retratadas, e os compararmos à tela inacabada, perceberemos que há elementos suficientes para se concluir que Betty retirou do fundo da gaveta do tempo, a história da “família artista” e travou, pela última vez, a luta interna que alimentou entre o desejo de fazer da pintura que praticava uma representação acadêmica e o de propugnar pelos seus pincéis, tintas, telas e papeis, finalmente, a liberdade estética que assistira ainda jovem no meio artístico que frequentara, ao lado do pai, no cenário expositivo de Belém, a partir do terceiro decênio do século XX.
Somente o lavis sobre o fundo “cinza chumbo esverdeado”[11], expondo a base laranja, ou ainda, a silhueta conseguida pelo gabarito da figura, somados às finas linhas a riscar a camada última pictórica seriam suficientes para a pintora superar a sombra do pai que a acompanhou por toda vida. Mas, Betty trafegava em sua visualidade artística com os pés em duas estradas, o que é corroborado com o que declarara na entrevista de 2000.
Muito embora Betty tivesse a consciência de que a prática e o ensino da pintura em seu atelier, careciam de superar o paradigma da pintura de cavalete, acadêmica, as vozes das gavetas da artista eram mais fortes e se faziam presentes por meio da lembrança de exemplos de reproduções afeitas à mimeses. O cartão postal recortado com anotações e manchado em várias partes com provas de tintas atesta que essas lembranças se fizeram sempre presentes e, na rosa representada na tela da menina com a flor, se verifica essa presença, uma vez que a pintora realizou um tratamento especial, muito embora mais livre, porém ainda arraigado á estética passadista.
Cartão postal com notas e provas de tintas de Betty 8,6 x 13,6 cm.
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará.
Betty Veiga Santos nasceu um ano antes do advento da Semana de Arte Moderna de 22. José Veiga Santos, nascido em 1890, teve boa formação, ainda jovem, em desenho na Europa e aperfeiçoamento na Fine Scholl of New Jersey nos EUA numa sólida estética acadêmica, notadamente pautada na representação da natureza, especialmente de paisagens. O pai de Betty realizou uma única individual de pintura em 1946, no Quitandinha Hotel Petrópolis, Rio de Janeiro, todavia há dez anos, em 1936 concorrera com 11 quadros ao 1° Salão de Belas Artes, evento de monta para a cultura visual paraense realizado no foyer do Teatro da Paz [12].
A pintura de paisagem do pai, sempre preencheu os olhos da jovem menina e também os de sua inseparável irmã – Lucy Veiga Santos. Vale lembrar que Lucy sempre foi a fiel guardiã de Betty. Fornecia toda assistência a nível profissional e doméstico à irmã. Ninguém chegava até a artista, sem antes ser recepcionado por Lucy, que gentilmente realizava a sondagem sobre o assunto. Aliás, na última visita que realizamos às irmãs em agosto/2014, a maior preocupação de Lucy era para com a vida e obra de Betty Veiga Santos, pois declarou-nos que “a arte da irmã precisava ser lembrada”. Lucy sempre frisava: “ela é uma artista, precisa ser reconhecida na história da arte de Belém.” Lucy possuía grandes conhecimentos sobre pintura, história da arte e bordados – foi aluna, nessa habilidade, da prima, Professora Elza da Veiga Tavares. Arte carregada de detalhes, de composição perfeita que a formação lhe legara, assim como o olhar de fotógrafo, influenciou sobremaneira a percepção e o estilo de Betty, a paixão pela natureza morta, paisagem e retrato, pouca chance deu à Betty de escolha em sua trajetória artística.
José Veiga Santos. S/t, Aquarela sobre papel sensibilizado, 3,5 x 22 cm, 1937.
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Belém (PA).
Ao referir-se à própria formação pictórica e à relação familiar, Betty assume a forte influência do pai, tanto em sua arte como na atividade de professora de desenho e pintura. Assume que tudo que aprendeu veio da experiência ao lado do pai e de cursos de pintura que fez para aprimorar a técnica. Ainda com dezesseis anos de idade iniciou-se na atividade do ensino da pintura, declarou a artista, em entrevista citada, uma vez que teve que dar continuidade às atividades do atelier escola do pai.[13]
Pelo material documental do espólio de Betty, percebe-se que a produção em estudos e desenhos que ela guardou do pai, serviram de orientação e consulta visual. Abaixo alguns esboços de estudo da pintora e outros do pai.
Betty Veiga Santos. Esboços (estudos).
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Belém (PA).
José Veiga Santos. S/t, Crayon sobre papel, 1937.
Acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Belém (PA).
O Atelier-Escola
Dedicamos este item para abordar questões relacionadas ao funcionamento do Atelier-Escola, a partir da experiência de um dos autores deste paper, que durante o período de 1974-1994, esteve vivendo o dia a dia do lugar – em períodos descontínuos. Por isso, no sentido de atribuir um valor mais narrativo e informal, construiremos o texto a seguir, na primeira pessoa do singular.
Eu sempre aguardei de forma ansiosa às terças-feiras - o dia das aulas com a professora Betty Veiga Santos. O Atelier era mágico para um garoto admirador das artes e, cuja família sempre o incentivou. Eu gostava daquele ambiente, onde a arte borbulhava na produção e na conversa dos frequentadores.
Como testemunha ocular, observava atentamente cada detalhe. Percebia que os alunos do atelier eram pessoas da classe média e alta da cidade de Belém – todos admiradores das artes, contudo, com objetivos distintos. Alguns possuíam o ideal de ser artista, outros exerciam a arte como hobby - uma prática apropriada para imprimir um rótulo de refinamento à educação – aliás, vale ressaltar que naquele estágio da minha vida, este era o propósito dos meus pais, cujo interesse maior era que eu fosse médico. O conhecimento sobre arte servia como um aprimoramento da minha educação. A Professora Betty, também, recebia muitos alunos do curso de arquitetura e profissionais liberais: advogados e médicos – que acabavam sendo amigos da artista.
No primeiro contato, a artista sondava os interesses daquele que estava ingressando no Atelier, bem como os seus dados pessoais para o registro na “escola de pintura” [14] – tudo muito organizado e sistemático. O olhar atento da artista-professora observava cada gesto dos alunos. Betty, sempre, teve uma sensibilidade que lhe permitia ver as minúcias das cores e a sutileza das formas – capaz de experimentar esteticamente cada objeto, seja ele natural ou feito pelo homem. Sempre delicada, contudo exigente, procurava atender cada dúvida dos alunos. O aroma das tintas que se misturava ao suave perfume das rosas que sempre adornavam os móveis – imprimia no espaço uma atmosfera festiva.
Na parede da sala, que antecedia a entrada do estúdio de pintura, um grande quadro do Sagrado Coração de Jesus, óleo sobre tela, pintado pelo seu pai José Veiga Santos, misturava-se com outros elementos decorativos: pinturas, móveis de entresséculos / XIX-XX, algumas pratarias e objetos que, ao mesmo tempo, davam um ar de elegância e sinalizava a religiosidade da artista.
Betty, a partir do final dos anos 1980, ficará conhecida como a “pintora dos bispos”[ii], em virtude de uma série de retratos dos arcebispos de Belém - pintados por encomenda do Mons. Nelson Brandão Soares (1923-2013) que sempre foi um grande admirador da artista . Esses retratos acabaram por se tornar um dos seus últimos trabalhos emblemáticos como pintora – além do conhecido painel “Adesão do Pará à Independência”, obra do acervo do Palácio da Cabanagem, sede do Poder Legislativo, na cidade de Belém O projeto desse trabalho é de autoria de Betty Veiga Santos, e foi pintado em parceria com sua aluna e amiga – Anita Panzuti. Tanto o retrato dos bispos, quanto a grande tela foram duas empreitadas que envolveram exaustivas e prazerosas pesquisas historiográficas e imagéticas. Cada rosto retratado envolveu uma coleta de dados fisionômicos em pinturas e fotografias.
Betty Veiga Santos e Anita Panzuti. Adesão do Pará a Independência.
Óleo sobre tela 600 cm x 272 cm.
Acervo do Palácio da Cabanagem, sede do Poder Legislativo.
Betty Veiga Santos. Dom Alberto Gaudêncio Ramos. 1989.
Óleo sobre tela.
Acervo da Sacristia dos Cônegos da Catedral de Belém.
O curso de pintura do Atelier Veiga Santos seguia uma sequência: aulas de desenho, pastel, aquarela e só então a prática da pintura a óleo. Betty sempre observava em suas aulas, que para pintar o aluno precisava ter o domínio do desenho e da teoria das cores – o que era desenvolvido nas aulas de desenho de observação e nas aulas de aquarela. A artista tinha grande habilidade no uso da aquarela.
Em cada aula, o aluno ao chegar ao Atelier, já encontrava sobre a prancheta o material que seria usado naquele dia – apostilas, imagens e a proposta que seria praticada naquela aula: desenho de observação, bico de pena, pastel, aquarela ou pintura a óleo. Era fascinante quando a artista corrigia nossos “erros” – um pequeno toque de suas mãos e tudo ganhava vida.
As aulas de retratos com modelo vivo no Atelier Veiga Santos, por exemplo, sempre eram muito aprazíveis. Betty, ao incentivar tal prática, solicitava para que um dos alunos convidasse um parente ou amigo para ser retrato (desenho). O convidado[i] ficava posicionado ao centro de um círculo com os alunos empunhando pranchetas com papel e crayon. Eram feitos vários esboços sob a orientação sistemática da artista, que percorria cada prancheta observando e orientando sob as proporções do rosto – o resultado era fantástico!
Algumas aulas aconteciam em lugares públicos de Belém: Museu Emílio Goeldi e Praça Batista Campos. Estas aulas eram produtivas e nos envolvia em um clima de encanto e magia. Assim, íamos seguindo o aprimoramento em nossas habilidades. Cada aluno era tratado de acordo com suas necessidades e objetivos de aprendizagem.
Considerações finais
Ao finalizarmos este relato de estudo em andamento, torna-se importante observar que Betty na prática de usar a fotografia como fonte para os seus retratos pictóricos e paisagens (encomendas), elaborava vários estudos a partir de uma revisão de imagens.
A prática artística e o método de ensino de Betty Veiga Santos, ainda que estivessem impregnados de um sistema acadêmico de representação, não podem ser confundidos com um estilo. Betty se valia de um conjunto de normas para a formação e a produção artística como um meio para realização da própria poética, flertava, em alguns momentos, com o neoclássico, romantismo, realismo, impressionismo e o simbolismo.
Desta forma, a nossa empreitada visa, despretensiosamente, ampliar as reflexões historiográficas e, de certa maneira, desmantelar cronologias. A prática daquela artista, que nasceu aproximadamente um ano antes de se estabelecer o modernismo no Brasil, e que perdurou por décadas seguindo os mestres da pintura com destreza, talvez possa perturbar a história linear de tempos e espaços. É dessa prática perturbadora – acadêmica em pleno século XX – que se estabelece a contradição do inconsciente do tempo.
Notas
[1] A partir de Maio de 2015, documentos pessoais, objetos e algumas obras da artista, passaram a pertencer ao acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará.
[2] FARIAS, E. In; Anais ANPAP, 2011.p. 1679-1689. “Betty Veiga Santos tinha seu atelier-escola numa casa simples, de linhas próprias da arquitetura da década de 40 que marcou a expansão da cidade de Belém no sentido dos bairros. Fomos recebidos então, após atravessarmos os jardins, por uma frágil senhora que meio desconfiada tentava manter uma boa aparência - a perfumada mulher nos seus setenta e cinco anos carregava sobre a face uma pesada máscara cosmética que denunciava quase uma tônica circense. Simpática e acolhedora a figura da pintora-professora fazia uma rima visual com o mobiliário chippendale no interior da casa. Cadeiras e poltronas de longas e tortuosas hastes e palhinha, ladeadas por mesinhas altas laterais, a ostentar vasos decorados, faziam um conjunto de delicadezas contido por paredes, em azul desbotado e recobertas, quase que totalmente, por telas e fotografias, emolduradas à antiga, a ponto de tocarem o forro do alto pé-direito.”
[3] Relatório de pesquisa, subsidiada pela FUNART, de RICCI, Paulo. “As Artes Plásticas no Estado do Pará”. In folio, c. 1977. Depositada na Biblioteca da instituição citada no Rio de Janeiro.
[4] Tratava-se do século XX.
[5] Ver (RICCI, 1997, p. 120)
[6] IDEM, p. 136).
[7] SANTOS, Luiz Carlos. A Virgem dos Espinhos, O Liberal, Belém, 4 de set. 2000. Caderno Cartaz, p. 1.
[8] Chegamos a essa idade por meio de cálculos matemáticos a partir de informações contidas no atestado de nascimento e entrevista da pintora em tela. Beatriz de Araújo Santos nasceu, segundo Registro de Nascimento do Cartório Maria Célia Figueiredo, livro n° 152 de Registro de Nascimento, folha 20, sob o n° 763, em 22 de abril de 1921 e, em entrevista de setembro de 2000 em que declara que tem 70 anos de dedicação à arte paraense o que leva à conclusão que iniciou a arte no ano de 1930.
[9] IDEM
[10] IDEM
11] A cor cinza, a artista obtinha em sua paleta, misturando azul, amarelo e carmim. O uso da cor preta era algo pouco usado. Mesmo para obter o preto, misturava verde com vermelho.
[12] C.F. notas datilografadas em documento pertencente ao acervo do Grupo de Pesquisa CHAA/FAV/ICA/UFPA.
[13] C.f. SANTOS, Luiz Carlos. Uma vida devotada às artes em sentido pleno, O Liberal, Belém, 4 de set. 2000. Caderno Cartaz, p. 1.
[14] Escola de pintura era uma expressão recorrente quando a artista se referia ao Atelier Veiga Santos.
[15] As grandes telas fazem parte de uma série de retratos pictóricos que inclui: Dom Mario de Miranda Vilas -Boas (1903-1968), Dom Antônio de Almeida Lustosa (1886-1974), Dom Alberto Gaudêncio Ramos (1915-1991), Dom Vicente Joaquim Zico (1927-2015), entre outros.
[16] Em fevereiro/1979, Ranyere Gadelha (1964) paraense nascido na cidade de Belém - aluno do Colégio Santo Antônio, naquela ocasião colega de Joaquim Netto (aluno do Atelier), foi retrato por vários alunos.
Referências
RICCI, Paulo. “As Artes Plásticas no Estado do Pará”, p. 231, c. 1977.
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte Brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. História da Arte no Brasil: textos de síntese. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2014.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempos dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
Edison Farias
Doutor em Artes ECA / USP, (2003). Professor Associado IV da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Atualmente é Coordenador do Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia, cadastrado no CNPq.
Joaquim Cesar da Veiga Netto
Doutor em História, Teoria e Crítica da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. Professor do Curso de Artes Visuais e Jornalismo da Universidade Federal do Amapá.
Este artigo encontra-se também publicado nos Anais da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.
Notas
[1] A partir de Maio de 2015, documentos pessoais, objetos e algumas obras da artista, passaram a pertencer ao acervo Grupo de Pesquisa Crítica e Historiografia da Arte na Amazônia da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará.
[2] FARIAS, E. In; Anais ANPAP, 2011.p. 1679-1689. “Betty Veiga Santos tinha seu atelier-escola numa casa simples, de linhas próprias da arquitetura da década de 40 que marcou a expansão da cidade de Belém no sentido dos bairros. Fomos recebidos então, após atravessarmos os jardins, por uma frágil senhora que meio desconfiada tentava manter uma boa aparência - a perfumada mulher nos seus setenta e cinco anos carregava sobre a face uma pesada máscara cosmética que denunciava quase uma tônica circense. Simpática e acolhedora a figura da pintora-professora fazia uma rima visual com o mobiliário chippendale no interior da casa. Cadeiras e poltronas de longas e tortuosas hastes e palhinha, ladeadas por mesinhas altas laterais, a ostentar vasos decorados, faziam um conjunto de delicadezas contido por paredes, em azul desbotado e recobertas, quase que totalmente, por telas e fotografias, emolduradas à antiga, a ponto de tocarem o forro do alto pé-direito.”
[3] Relatório de pesquisa, subsidiada pela FUNART, de RICCI, Paulo. “As Artes Plásticas no Estado do Pará”. In folio, c. 1977. Depositada na Biblioteca da instituição citada no Rio de Janeiro.
[4] Tratava-se do século XX.
[5] Ver (RICCI, 1997, p. 120)
[6] IDEM, p. 136).
[7] SANTOS, Luiz Carlos. A Virgem dos Espinhos, O Liberal, Belém, 4 de set. 2000. Caderno Cartaz, p. 1.
[8] Chegamos a essa idade por meio de cálculos matemáticos a partir de informações contidas no atestado de nascimento e entrevista da pintora em tela. Beatriz de Araújo Santos nasceu, segundo Registro de Nascimento do Cartório Maria Célia Figueiredo, livro n° 152 de Registro de Nascimento, folha 20, sob o n° 763, em 22 de abril de 1921 e, em entrevista de setembro de 2000 em que declara que tem 70 anos de dedicação à arte paraense o que leva à conclusão que iniciou a arte no ano de 1930.
[9] IDEM
[10] IDEM
11] A cor cinza, a artista obtinha em sua paleta, misturando azul, amarelo e carmim. O uso da cor preta era algo pouco usado. Mesmo para obter o preto, misturava verde com vermelho.
[12] C.F. notas datilografadas em documento pertencente ao acervo do Grupo de Pesquisa CHAA/FAV/ICA/UFPA.
[13] C.f. SANTOS, Luiz Carlos. Uma vida devotada às artes em sentido pleno, O Liberal, Belém, 4 de set. 2000. Caderno Cartaz, p. 1.
[14] Escola de pintura era uma expressão recorrente quando a artista se referia ao Atelier Veiga Santos.
[15] As grandes telas fazem parte de uma série de retratos pictóricos que inclui: Dom Mario de Miranda Vilas -Boas (1903-1968), Dom Antônio de Almeida Lustosa (1886-1974), Dom Alberto Gaudêncio Ramos (1915-1991), Dom Vicente Joaquim Zico (1927-2015), entre outros.
[16] Em fevereiro/1979, Ranyere Gadelha (1964) paraense nascido na cidade de Belém - aluno do Colégio Santo Antônio, naquela ocasião colega de Joaquim Netto (aluno do Atelier), foi retrato por vários alunos.
